A rede rangeu como se abrisse os olhos. Eu a estiquei entre o cajueiro e o esteio da varanda, em frente ao rio, e deixei que o vento quente de Palmas passasse por mim carregando um salzinho doce de água doce. No fim da Praia da Graciosa, o barulho de castanhola estalando se misturava às risadas dos banhistas e aos pregões de picolé de pequi. O sol, enorme, já ensaiava repousar na superfície lisa do Tocantins. Hoje era o dia do prazo. E promessa não se negocia, dizia meu pai.
Quando ele morreu, deixou duas coisas: a casa de palafita, metade madeira, metade teimosia, e um bilhete em papel amarelado, guardado atrás do retrato de casamento: “Filho, se um dia a tentação chegar, espere o pôr do sol. O rio decide melhor que a gente.” Eu ri quando encontrei aquilo, de luto recente, achando que fosse uma poesia daquelas que ele pescava durante as madrugadas. Mas a tentação bateu na porta em forma de dois homens de polo e sorriso treinado. Construtora. Projeto de quiosques padronizados, deck de madeira, música ambiente. Falaram bonito da “nova orla”, disseram que a casa atrapalhava a vista. Atrapalhava a vista de quem? Da cidade, respondeu o mais alto, apontando com uma caneta para a linha imaginária onde o céu veste água. O valor que ofereceram daria para eu trocar de vida. O prazo era hoje, até o pôr do sol.
Passei a tarde fingindo consertar o remendo do telhado, mas era só para não pensar. A aresta das telhas riscava os dedos, e o sangue, quando brotava, secava quase instantâneo no calor. Dona Vanda, vizinha, passou trazendo um pratinho de biscoito de polvilho, me olhou de cima a baixo e não perguntou nada. Só disse: “Ventania dessa, se a gente não firma tudo, voa”. Eu balancei a cabeça. O vento aumentou. Um canoeiro, desses que chegam do nada e somem na mesma risca de água, encostou no meu trapiche*. Era o Seu Lídio, velho conhecido do meu pai. Trouxe um saco com três tucunarés e um sorriso sem pressa.
— Vim ver o pôr do sol contigo — falou, sem perguntar se podia.
Ele entrou com a intimidade dos que nunca se despedem. Ajeitou os peixes numa bacia, olhou as paredes, olhou o chão. O barquinho, amarrado, batia de leve no esteio, como quem chama. Seu Lídio encostou a mão no meu ombro.
— Teu pai me deixou uma coisa, mas eu só podia te entregar quando tu tivesse com cara de quem ia fazer besteira.
— E eu tô com essa cara?
— Tá com a cara do vento.
Ele desamarrou o barco e me chamou. Descemos. O rio ali era uma pele mansa. O sol, mais baixo, deixava uma estrada de cobre. No meio da travessia curta, Seu Lídio se inclinou e, do fundo do barco, puxou uma caixinha deformada pela umidade, embrulhada em plástico e fita isolante. Eu ri, nervoso.
— Herança pirata?
— Carimbo, papel e lembrança. Abre.
Dentro, um carimbo de madeira carcomida com as letras gastas: Palácio Araguaia. Ao lado, um papel dobrado muitas vezes, com a tinta esmaecida e o brasão do Estado ainda visível. Era uma autorização antiga, assinada por um secretário de outro tempo, reconhecendo a casa do meu pai como “ponto tradicional de apoio a canoeiros”, com direito de permanência como patrimônio de uso comunitário não oneroso. Anexado, um mapa de demarcação com os esteios apontados como se fossem o alfabeto do rio. O documento trazia, no verso, uma anotação do punho do meu pai: “Carimbo é o avesso da promessa.”
— Ele foi atrás disso quando começaram a falar em derrubar as palafitas, explicou Seu Lídio.
— Disse que promessa de beira-rio precisa de papel, porque cidade esquece. Pediu pra eu guardar no fundo do barco. “Só entrega quando meu menino quiser vender a sombra”, ele disse. E aí? Quer vender?
O vento bateu mais forte. Do lado da praia, alguém começou um forrozinho. As pessoas gritavam quando uma lancha levantava a crista de água. Eu respirei como quem aprende de novo. A carta da construtora, dobrada no meu bolso, parecia de chumbo. Puxei o papel, li a cifra. Pensei em contas, em perspectivas, em dívidas. Pensei na promessa que eu tinha feito ao meu pai na UTI, quando o monitor desenhava serras no escuro: cuidar da casa, que era o mesmo que cuidar do que restou dele. Promessa de hospital costuma escorrer fácil quando encontra caneta. Eu sabia.
— E se eu ficasse? — falei, baixo.
— Ficando, cê não fica sozinho
— disse Seu Lídio.
— O rio sempre tem gente. E quem tem carimbo dorme melhor.
Voltamos com a proa cortando o cobre do sol. No trapiche, a sombra da casa se estendia longa, atravessando areia e entrando pela água, como se fosse uma língua tentando tocar a própria história. Na varanda, a rede me esperava com a paciência dos que não cobram aluguel. Eu encostei o carimbo na mesa. O peso era macio. Bati de leve num papel em branco: a marca saiu torta, mas saída estava. Peguei o celular, abri o e-mail que a construtora aguardava. Escrevi: “Agradeço a proposta, mas declino. A casa permanece.” Enviei antes de o sol tocar o rio, como se obedecesse um relógio que só existe na beira d’água.
A luz mudou de cor de repente, aquele dourado que só a Graciosa sabe puxar do bolso, e as coisas perderam as arestas. Fui para a cozinha e botei água para um café, a fé simples do dia. Dona Vanda apareceu de novo, agora com um pote de paçoca de carne. “Senti cheiro de decisão”, disse, rindo. Contei do carimbo, do papel, da promessa. Ela fez um sinal de respeito, quase benção.
— Então agora cê vai fazer o quê com essa teimosia?
— Abrir um quiosque, falei, sem pensar muito.
— Mas do meu jeito. Caldo de cana, pequi, biscoito de polvilho, rede para quem quiser ver o sol deitado.
— E música?
— O barulho do rio já canta. Mas a gente puxa uma catira se o vento pedir.
Rimos. Seu Lídio limpava os peixes com a destreza de quem conta histórias com faca. O sangue escorreu fino para um balde e depois foi devolvido à água, que levou sem reclamar. Liguei para um amigo marceneiro. Falei do deck pequeno, das luzes miúdas, de uma placa simples: “Promessa de Beira-Rio”. Do outro lado, ele aprovou. “Amanhã cedo tô aí.”
Quando a noite quis chegar, a usina ao longe acendeu suas luzes como constelações que aprenderam disciplina. Uma fileira de postes elétricos, lá atrás, acendeu quase ao mesmo tempo, e a cidade virou uma foice clara curvada sobre a praia. A rede, suturada ao cajueiro, rangeu outra vez, mas agora como quem se espreguiça. Deitei. O vento passou, levando um resto de calor, e, ao invés do peso no peito, senti um vazio bom, espaço onde cabem coisas.
Lembrei do meu pai, de quando me ensinou a atravessar o rio de noite: “Você não olha para o escuro. Procura os cheiros. Se sentir pequi, é que o vento vem da feira. Se ouvir castanhola estalar, a praia está perto. E se o vento não disser nada, é porque é hora de ficar.” Fechei os olhos e escutei. O rio batia devagar no esteio. As castanholas estalavam ao longe, pontuando o silêncio. O vento, satisfeito, calou.
No dia seguinte, antes de o sol virar moeda sobre a água, chegaram três rapazes oferecendo ajuda para montar o quiosque. Um deles, com sotaque do Maranhão, disse que vinha sempre para pescar piau e que faltava um lugar de sombra boa e café forte. “Agora tem.” Dona Vanda trouxe um pano de mesa bordado com ipês amarelos. Seu Lídio pregou um sino pequeno no canto da varanda. “É para anunciar o pôr do sol.”
Ao meio-dia, quando o calor cortava qualquer pensamento, vieram os homens de polo. Ficaram ali, acanhados, olhando o carimbo na parede, a autorização emoldurada, a fila pequena de gente pedindo caldo de cana e biscoito. Falei com eles sem rancor. Ofereci um prato. O mais alto recusou, educado. Disse que entendia, que “o patrimônio afetivo” — foi essa a expressão — às vezes pesava mais que planilha. Dei de ombros. Quem faz conta do vento?
Quando eles foram embora, uma rajada levou o chapéu de um banhista, que correu rindo e quase caiu na água. O chapéu passou por debaixo da varanda, deu duas voltas sobre si mesmo e ficou preso no esteio, como se o rio também tivesse suas vontades. Tirei o chapéu e o devolvi. O homem agradeceu ofegante. “Achei que tinha perdido.” Eu respondi que o Tocantins costuma devolver o que é promessa.
No cair da tarde, o sino tocou pela primeira vez. Alguém puxou, com delicadeza, e o metal pequeno disse tintim. As pessoas silenciaram, como se um protocolo sem leis tivesse sido ativado. O sol, majestoso, encostou na lâmina d’água, e, por um instante que não cabe no relógio, parecia que era a casa que afundava no céu. A rede rangeu, sim, mas, agora, como quem sorri. E eu entendi o bilhete do meu pai: promessas de beira-rio se cumprem com os olhos.
Fiquei ali, deitado, enquanto a luz ia embora devagar. A cidade acendeu outra vez, e a usina, lá longe, brilhou como se lembrasse os nomes dos que um dia trouxeram a energia até a última casa. Na mesa, o carimbo dormia feito pedra. Encostei a mão nele. Era morno, como madeira que guardou sol. Pensei que, dali em diante, meu trabalho seria simples e impossível: manter aberta uma sombra onde o vento pudesse passar. E todo fim de tarde, quando o sino tocar, eu vou agradecer não por ter ficado, mas por ter esperado o pôr do sol decidir comigo.
Na água, uma lancha riscou uma trilha breve de prata, logo desfeita. O rio recomeçou liso. A noite desceu sem barulho. E a promessa, que não se negocia, dormiu comigo na rede, na mesma cadência do estalo das castanholas.