Eu tinha acabado de aprender o nome das ruas floridas de Goiânia quando o telefone tocou como um alarme antigo dentro do meu bolso. Era fim de tarde, céu de bougainvílias no Setor Bueno, caixas ainda por abrir, e eu tentando fingir que começar de novo cabia dentro de um apartamento de um quarto.
— Precisamos falar urgente — disse a secretária do curso, voz de quem corre num corredor. — Sua prova final… sumiu.
Sumiu. A palavra abriu um buraco. Eu tinha deixado a cidade anterior com a sensação de dever cumprido, diploma quase no bolso, notas fechadas. A prova valia metade do período. Sem ela, eu virava um erro administrativo com pernas.
— Como assim, sumiu?
— A professora não encontra o seu envelope. Sem a prova, não podemos lançar a nota. E o sistema fecha hoje.
Olhei para as caixas: livros, canecas, uma planta maltratada. Do lado de fora, uma senhora regava roseiras. Goiânia me recebeu perfumada, mas naquele instante o cheiro virou enjoativo. Sentei no chão, entre o aspirador e a saudade.
— O que eu faço?
— Tente falar com a professora. Estou mandando e-mail para a coordenação. Se não resolver hoje, você… você pode perder o semestre.
Perder o semestre. Em mim, a frase entrou como um copo d’água entornado de uma vez — sem ar entre um gole e outro. Liguei para a professora. Caixa postal. Mandei mensagem: “Prova final perdida. Preciso de retorno.” Abri o notebook, escrevi e-mails em cascata: coordenação, secretaria, colegiado, até para mim mesmo, como se eu pudesse copiar algum futuro em que tudo terminasse bem. As palavras saíam educadas e frias, mas minha cabeça gritava.
Fui para a varanda. O trânsito corria como uma fita brilhante e indiferente. Em cada buzina, parecia haver um “e se”: e se o envelope tivesse caído no lixo, e se alguém tivesse confundido meu nome, e se a mesa da sala 204 tivesse engolido a prova com a elegância de um truque barato. O sol desceu, as luzes acenderam, e eu, no meio, tentava respirar por cima do medo, como quem boia num fervedor.
O celular vibrou. A secretária, de novo, já com um cansaço trêmulo:
— Falei com a professora. Ela está na faculdade. Disse que vai vasculhar a sala. Você pode ficar de plantão?
— Estou aqui.
A noite avançou em passos de corredor. Liguei de vinte em vinte minutos, para disfarçar que queria ligar de dois em dois. Mandei mais e-mails, anexei comprovante de presença, foto da capa da prova que eu, por mania, tinha fotografado antes de entregar. Em algum momento, comecei a lembrar do dia do exame: a caneta azul falhando na terceira questão, a janela fazendo um retângulo de luz sobre o chão, o ventilador soprando pedaços de conversa de outras salas. Eu estava certo de ter assinado, grampeado, entregue. Eu estava certo. Mas a certeza, na ausência do papel, é só um animal assustado.
Às 21h13, o telefone tocou. Eu atendi antes do primeiro toque terminar.
— Achei — disse a professora, ofegante. — Estava no fundo da gaveta, preso atrás de uma pasta de monografias. Caiu com o grampo virado para dentro. O seu nome… ficou colado na madeira.
Sentei. O corpo desaprendeu como ficar em pé. Do lado de fora, alguém riu alto; parecia que a cidade tinha sido informada. Do outro lado da linha, a voz dela mudou de tom, menos defesa, mais humana:
— Sinto muito pelo susto. Já lancei a nota. Você está aprovado.
A palavra aprovado veio como chuva breve em calçada quente: subiu um vapor, e eu chorei sem barulho. A planta no canto da sala, que até então era só outra coisa por regar, ganhou de repente um sentido de permanência. Goiânia voltou a cheirar a flores.
— Obrigado, professora — eu disse. — De verdade.
Desliguei e fiquei na varanda até o vento cansar. Pensei em como as nossas vidas às vezes dependem de um grampo virado, de uma gaveta mal fechada, de uma mão que procura mais um minuto do que devia. Pensei que o drama daquele dia cabia numa frase simples no currículo — “curso concluído” —, e que ninguém veria a noite que eu passei procurando ar dentro de e-mails.
No dia seguinte, comprei uma prateleira, abri as caixas, reguei a planta. Coloquei, num porta-retrato, a foto da capa da prova: meu nome torto, a data, o carimbo. Não como troféu, mas como lembrança do que quase se perdeu. E saí para caminhar entre ipês e jasmins, repetindo baixinho, para não esquecer: às vezes a vida só pede que a gente insista mais um telefonema. O resto, as flores explicam.


